quarta-feira, 9 de abril de 2008

Clarice Lispector, Baratas e os Ratos

Foto de Clarice Lispector

Nas minhas breves férias de dezembro, tão curtas, tão necessárias, aliás não me lembro de quando tive férias mais longas, de trinta dias, como os trabalhadores normais (e como é importante o direito ao ócio), me entreguei à leitura de mais uma obra de Clarice Lispector. Sei que é um abuso afirmar isso, um dose alta de petulância, mas carrego um pouco dos sentimentos de Clarice dentro de mim. Ela, ao usar com maestria as palavras num jogo de narrativa nada convencional, expressa com perfeição um ambiente psicológico envolvente, no qual o personagem carrega parte das suas angústias, dos seus desejos sufocados, dos seus medos, e, claro, dos seus prazeres. É nesse ambiente de solidão, de amputação de parte do meu "eu", da busca de algo além de mim e do despertar para uma ação que me identifico, me acho, me encontro. E foi lendo A Paixão Segundo G.H., logo ali nas primeiras páginas, que me deparei com uma barata, um ser que para Clarice é absolutamente nojento, repugnante, provocador de náuseas - uma metáfora. Entretanto, o encontro com a barata acende uma fagulha de consciência ideológica, o despertar da vida cotidiana, o enxergar o outro, desnaturalizando as relações e os papéis sociais, que são construídos social e historicamente.
Se no livro de Clarice, o ser repugnante é a barata, para mim, é o rato. E foi num dia desses, saindo da minha sala de trabalho tão clean, aparentemente harmônica, simétrica, que, andando pelo centro da cidade dei de cara com um rato. Não era qualquer rato, era enorme, assustador. Ali estava ele, com aquele olhar desafiador, bem no centro da cidade, ambiente que deveria voltar a visitar com mais frequência porque traz um extrato daqueles e daquelas que compõem e habitam o espaço urbano: a trabalhadora doméstica, o vendedor ambulante, a dona-de-casa, o comerciante, o menino de rua, a criança doente na farmácia, o bancário, o servidor público, a menina prostituída, enfim, ali está o movimento, a multidão de rostos que têm uma face...sim, a multidão não tem uma única cara como a gente imagina. Em cada face uma história, uma perda, um encontro, um ser completo, outro incompleto, outro estraçalhado, outro meio vazio, outro radiante...no meio daquela massa estava o rato. A primeira reação foi o pavor, o medo, o pulo, o grito sufocado e depois o nojo, a ânsia, mas na sequência o despertar: fiquei imaginando a morada daquele rato no esgoto, sua família, seus ratinhos, suas festas regadas a queijo nas pastelarias, sua voracidade em devorar os livros do sebo, não para alimentar o espírito, mas para alimentar a carne como se o papel, que carrega uma história, fosse um pedaço de picanha gorda e mal passada, sangrando no espeto e na mesa...imaginei seu instinto de sobrevivência para fugir das ratoeiras. Será que rato usa máscaras (persona) no sentido de Jung? Quais seriam as máscaras de um rato? Logo depois, já estava rindo das minhas perguntas toscas e, pensando na existência dos ratos humanos e nos humanos ratos, fiquei me perguntando o porquê daquele pavor paralisante diante de um bichinho tão pequeno, mas que o meu medo o transformava num ser enorme e gigante. Esse pavor quase me encorajou a buscar ajuda entre os indivíduos que compõem a multidão para dar um fim àquele roedor – tão pequeno, apenas mais sobrevivente do esgoto, sobrevivente da selva de pedras, mas, contraditoriamente, tão poderoso a ponto de me incomodar, de me ameaçar. Em A Paixão Segundo G.H., a personagem é desafiada a se aproximar da barata, a tocá-la e a experimentá-la, sentindo aquela massa branca. É a volta ao seu ser primitivo, portador de sentimentos selvagens. Um percurso doloroso, angustiante, mas um caminho para a epifania, para a libertação do sistema.
"Esse esforço que farei agora por deixar subir à tona um sentido, qualquer que seja, esse esforço seria facilitado se eu fingisse escrever para alguém. Mas receio começar a compor para poder ser entendida pelo alguém imaginário, receio começar a "fazer" um sentido, com a mesma mansa loucura que até ontem era o meu modo sadio de caber no sistema. Terei de ter a coragem de usar um coração desprotegido e de ir falando para o nada e para o ninguém? - assim como uma criança pensa para o nada - e correr o risco de ser esmagada pelo acaso."
Não, não toquei no rato, não quis viver esse desafio, não desejei sequer imaginá-lo por dentro, suas vísceras. Não. Não. A minha revelação não foi tão intensa. Estar ali, cara a cara, com ele me fez pensar sobre o outro, sobre mim, sobre a cidade, sobre a multidão, sobre a minha sala, sobre a minha solidão. Saí refletindo mais sobre o meu pavor, sobre os meus medos. Me fez ver que o outro não é tão gigante assim, não é tão nojento assim e talvez o seu medo seja maior do que o meu. Diante da possibilidade de ver o meu salto esmagá-lo, o coitado saiu correndo. Os ratos temem os humanos. A partir de então, comecei a pensar na possibilidade daquela pobre criatura também sentir a dor cruel da solidão, mesmo morando no meio de uma multidão. Veio a piedade.
Elis - Como Nossos Pais

Maria Rita - Essa Mulher

3 comentários:

MARTHA THORMAN VON MADERS disse...

Seus textos são poderosos, adoro vir aqui.
Aproveito para dizer que fizuma postagem nova e se puderes apareça por lá.marthacorreaonline.blogspot.com

Unknown disse...

Nanci, parabéns pelo excelente texto...fico impressionada com sua capacidade com sua sensibilidade. vc é uma escritora!

Anônimo disse...

adorei o texto...sempre que posso dou uma passada para recuperar minhas energias...pois sempre tem alguma coisa..ainda que existe...maria -sem -vergonha...parabéns querida amiga nanci.