domingo, 2 de março de 2008

Rio, mar, corpo, aborto e direitos das mulheres

"Viver, intensamente, é você chorar, rir,
sofrer, participar das coisas, achar a verdade nas coisas que faz.
Encontrar em cada gesto da vida o
sentido exato para que acredite nele e o sinta intensamente."

Leila Diniz


Como é bom ver o mar. Sentir a brisa. Pisar descalça na areia. Ir ao encontro da água. Ver a fúria noturna do Atlântico na Avenida Atlântica. Sentir o meu corpo livre ser tatuado com desenhos invisíveis pelas ondas. Passarei uma parte da Semana Internacional da Mulher no Rio, cidade que me encanta pela sua geografia urbana, pela música, pela beleza despojada dos seres humanos e, inclusive, por mostrar de forma escancarada as desigualdades sociais. Lá, nada é sutil. Diferente daqui, onde os parques e avenidas largas escondem as misérias humanas que disputam os restos podres nos lixões, a dor do abandono e das desigualdades nos becos e vilas - adoro os parques e avenidas, mas quero essa beleza em todos os cantos da cidade.
E por falar em desigualdades, Semana Internacional da Mulher, corpo e Rio de Janeiro, um dia desses uma menina carioca foi presa por buscar ajuda num hospital público para as sequelas de um aborto provocado. Negra, pobre e desesperada, a menina negra foi denunciada por uma profissional do hospital e foi condenada por uma juíza a pagar uma fiança de 2 mil reais. Até nos casos de aborto, a condenação tem componente de classe e étnico, uma vez que a menina negra só foi presa porque buscou atendimento num hospital público. Já as meninas ricas, que fazem abortos nas clínicas particulares e recebem um tratamento digno, jamais correriam esse risco e nem de morte.
Não se arrepiem minhas amigas feministas, mas digo que não sou a favor dos discursos que defendem o aborto como método contraceptivo. A questão é bem mais complexa. Mas também repudio os discursos moralistas religiosos que se fecham na condenação e são cúmplices das milhares de mortes por ano de mulheres, na sua maioria negras e miseráveis, vítimas de abortos clandestinos. Devemos romper com essa hipocrisia e assumir que o aborto mata as nossas mulheres e que o Estado deve intervir para assegurar o direito à vida e à saúde. No Brasil, o aborto inseguro é a quarta maior causa de morte materna. Estima-se que a cada ano ocorram de 750 mil a 1 milhão de abortos clandestinos. A única forma de reduzir essa prática insegura é legalizando-o. Isto é, o aborto deve deixar de ser crime e o sistema de saúde pública deve assegurá-lo às mulheres com gravidez indesejada, além, é óbvio, de tratamento digno.
Neste aspecto, há no Ministério da Saúde uma grande sensibilidade de tratar o aborto como tema de saúde pública, em sintonia com as plataformas do Cairo e de Pequim. Defendo que o aborto seja utilizado como o último recurso e que a sua legalização venha acompanhada de medidas preventivas como a educação sexual e o acesso a meios de contracepção. Atualmente, O Código Penal ainda vigente, de 1940, considera o aborto crime, exceto quando se trata de perigo de vida para a gestante ou quando a gravidez é resultante de estupro.

Nós, mulheres, sabemos muito bem que a nossa sexualidade e os direitos reprodutivos ainda estão submetidos a uma cultura sexista. A nós é imputada a culpa por uma gravidez indesejada, como se o ato sexual fosse uma atitude solitária. Relações sexuais forçadas são rotinas no país, inclusive dentro de instituições religiosas.

A revolução feminina, que marcou o século XX ao lado da revolução tecnológica, deve prosseguir intensa neste século XXI com muitas lutas, movimentos, direitos, conquistas, transformações e poesia: "você me vem de novo...chega, não pede licença, transforma palavras em imagens fálicas e, ainda, se sente dono da casa, portador de todos os direitos, inclusive de tocar o meu corpo...Ah, homem! Não vá pensando que é assim...Esta casa tem dono, ou melhor, tem dona: mulher atrevida, metida, destemida, que para você se meter a entrar e meter vai ter que aprender a curar as minhas feridas, a me olhar por dentro, a me ungir com amor, a trazer a lua cheia, a plantar violetas no meu jardim e molhá-lo com salivas doces... " (NS)

Encontro no Dia 8 de Março
No dia Internacional das Mulheres, estaremos fazendo um grande encontro virtual no blog da minha amiga Lys, astrônoma, que mora na Inglaterra. Vocês estão convidados/as a participar e postar informações, questões, certezas, dúvidas, conquistas, desafios que nos levam a continuar na luta pela igualdade na diversidade.
http://universodesconexo.wordpress.com/coletiva-pelas-mulheres/

8 comentários:

Anônimo disse...

Meu anjo, o que falar alem de que estou com voce em absoluto. Nao acho que o aborto deve ser usado como metodo contraceptivo e acho que essa nao eh a ideia na causa feminista de qualquer forma. Mesmo porque sabemos muito bem os riscos envolvidos em um aborto para a saude da mulher. No entanto, acho que devemos ter o direito de escolher sempre e nao julgar nunca as mulheres que por algum motivo chegaram a conclusao de que o melhor para elas seria o aborto, pois cada um sabe aonde seu calo aperta nao eh mesmo ? E nao podemos julgar as feridas dos outros... nos mulheres, dominadas pelo instinto materno que nos colocam desde muito cedo, sabemos mais do que ninguem a dificuldade que eh tomar uma decisao desse tipo e ja somos nossas proprias inquisidoras. Nao necessitamos absolutamente ninguem que nos julgue alem de nos mesmo.

Como voce pode ver, estou com voce pela legalizacao do aborto em absoluto pelos mesmos motivos que enumeraste muito bem. E incluo o fato que devemos ser livres para escolher ser maes ou nao. Eu escolho ser mae sempre pois acho a maternidade um barato... mas cada um deve ter o direito de escolher por si de acordo com suas circunstancias.

Estou com voce de corpo, ultero e alma ;)

Muitos beijos,
Lys

Maria-Sem-Vergonha do Cerrado disse...

Lys, querida, por um período já usei o discurso do direito à livre escolha, mas depois que a maternidade aconteceu na minha vida, recuei. No entanto, ao ler o seu texto, confesso que ele me sensibilizou: "cada uma sabe onde o seu calo aperta"...quem sou eu para julgar as feridas dos outros, não é mesmo?
Você tem toda razão: a mulher também tem o direito de ser livre para escolher.
Também estou com você de corpo, últero e alma. Muitos beijos

Anônimo disse...

Eu ainda quero discutir a questao do aborto no meu blog e sei que sera bastante polemico. Quero contar com sua participacao. Mas estou esperando um momento que sei que sera melhor do que agora e que causara maior entendimento e simpatia pelas pessoas. Tenho um motivo para adiar por enquanto mas ainda nao posso contar ;)

Um forte abraco,
Lys

Unknown disse...

"O proletariado não pode atingir a liberdade completa sem conquistar a plena liberdade para a mulher”- Lenin

A luta pelo socialismo, única forma de destruir o sistema do capital, não é uma luta abstrata - é real, possível e bastante concreta. Devemos nos organizar e através da luta cotidiana criar condições para uma vida mais justa.

Todas nós temos uma história para contar, conhece alguém de sua família, escola ou comunidade que engravidou fora de hora, apesar de usar métodos contraceptivos; que sofreu um estupro e, infelizmente, além de toda a violência, engravidou. Ou então aquela amiga cujo namorado ou marido não admite usar preservativo.

Precisamos ir às ruas, mostrar que as mulheres precisam da descriminalização e legalização do aborto para que suas vidas sejam preservadas.

Kelly Cristina

Maria-Sem-Vergonha do Cerrado disse...

é, Kelly, vc aponta o caminho...temos de continuar a nossa revolução que marcou o século passado. Mesmo com muitos avanços e conquistas, ainda temos um caminho longo a percorrer tanto no combate à violência, na socialização da riqueza, no reconhecimento no mercado de trabalho e na legalização do aborto. Sei que vc é aguerrida e faz a diferença...um beijo, como diz a minha amiga Lys, de corpo, útero e alma.

ventura disse...

Nan
não há pior discurso que o moralista envolvido nas disucssões que dizem respeito ao direito ao corpo e sexualidade humana, caso mais dramático é o que as mulheres vivem...
Joan Scott definiu muito bem a condição em as mulheres, o poder no ocidenten é macho, branco, rico e heterossexual...quem não se enquandra não pertence aos espaços de poder e decisão, esse poder cristalizado decide por nós.
O movimento de mulheres luta por direito que é básico da existência de ser: direito sobre seu próprio corpo, auto-determinação, me revolta esses poderes, principalmente as igrejas e seus conservadores, dizerem que método de contracepção é abstinência, não nos dão o direito de amarmos e sentimos prazer.
Como avançamos, diante dessa hipocrisia que só gera hemorragia e morte de mulheres jovens, pobres, moradoras das periferias e favelas, negras. Como o SUS não é capaz de atender essas mulheres vítimas de abortos mal-sucedidos de maneira humanizada, que direitos eles têm de julgar e aplicar o veredito de deixarem essas mulheres morrerem nos corredores, enquanto a classe média tem o todas as condições materiais de realizar a interrupção da gestação, a maternidade é direito, uma opção, uma vontade de pessoas, não pode ser o que define o ser mulher. Aborto seguro, com atendimento médico, assitisdo pelo SUS é um direito, quase um milhão de mulheres morrem por isso no Brasil, cade o estado laico que deve garantir esse direito ?
Mas ainda sei que isso vai demorar, mas estou aqui como militante feminista para viver esse dia sem sexismo, homofobia, racismo...
Ajudando a empunhar essa bandeira, como dizem nossas companheiras da MMM: "Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade
Esses sistemas se reforçam mutuamente. Eles se enraízam e se conjugam com o racismo, o sexismo, a misoginia, a xenofobia, a homofobia, o colonialismo, o imperialismo, o escravismo e o trabalho forçado. Constituem a base dos fundamentalismos e integrismos que impedem às mulheres e aos homens serem livres. Geram pobreza, exclusão, violam os direitos dos seres humanos, particularmente os das mulheres, e põem a humanidade e o planeta em perigo".

Nós rejeitamos esse mundo!

Propomos construir outro mundo, onde a exploração, a opressão, a intolerância e as exclusões não existam mais; onde a integridade, a diversidade, os direitos e liberdades de todas e todos são respeitados.

Maria-Sem-Vergonha do Cerrado disse...

Didio, vc me fez lembrar Leonardo Boff ao afirmar que Deus é negro e feminino, ou seja, é uma bela mulher...e vc é um homem feminista que nos ajuda a engendrar novos seres humanos, rompendo os muros do preconceito e das desigualdades. Quem venham mais homens assim com nuances femininas, com solidariedade e generosidade...que aprendam com as nossas dores, com as nossas vivências, com os nossos cantos e também nos ensinem com os seus dilemas, certezas e encantos.
É bom lembrar sempre do Boaventura de souza Santos: "As pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza."

Unknown disse...

a legalização, como tudo, tem duas moedas. na maioria dos casos, o aborto é um paliativo p/ problemas que não são resolvidos em sua estrutura. pra não ser pessimista, tivemos muitos avanços durante os séculos, mas estamos longe de um mundo melhor. por isso, precisamos dos curativos. Quanto à liberdade sexual, os homens têm se aproveitado da busca das mulheres, que deveriam ser como na poesia: mulher atrevida, metida, destemida - românticas, mas não enganadas e usadas.