sábado, 22 de março de 2008

Anjos e Judas desta Sexta-feira Santa

Foto: Sebastião Salgado
Hoje, Sexta-feira Santa, a memória me levou até a infância em Ivinhema. Dois acon-tecimentos marcavam esta data tão cristã, tão católica. Uma era a procissão com seus anjos e o Cristo na cruz. Sonhava em me vestir de anjo, com as asas brancas decoradas com papel crepom. Desde pequena, tenho uma curiosidade aguçada para desbravar e fazer descobertas não só o mundo dos humanos, mas também o mundo do “sagrado”, mas só consigo ir até o limite da nossa galáxia, a Via Láctea.
O outro acontecimento era a malhação de Judas no Sábado de Aleluia, um costume trazido pelos portugueses. Sempre ajudava o meu pai a construir o boneco a ser malhado, geralmente, confeccionávamos com cabeça de mamão e roupas velhas. Hoje, assistindo ao Jornal Nacional, essas duas imagens tão antagônicas – anjo e Judas – me apareceram simultaneamente, quando vi uma criança de oito meses ser enterrada num caixão branco, era um anjinho. Ela fora mais uma vítima do descaso brasileiro com a saúde pública. Vítima da dengue, a pequena e milhares de outros brasileiros, como o meu próprio filho fora no ano passado, pagam caro pela falta de seriedade no combate a uma epidemia característica de país subdesenvolvido. A dengue, a febre amarela e a leishimaniose são doenças que já tinham sido erradicadas, mas voltam com toda força não só por causa da crescente urbanização, do desmatamento, mas principalmente pela ineficiência das campanhas e ações preventivas, cujas verbas escassas acabam em outras contas. A morte pode ser anunciada não só pela picada do mosquito transmissor, mas também pela falta de atendimento nas unidades de saúde pública, sempre lotadas, sem número de médicos e profissionais de saúde suficientes. A morte do bebê, a dor e o lamento da sua mãe, o desespero de outros pais nas filas de atendimento nos remetem às chagas de milhões de brasileiros que carregam as cruzes das injustiças e das desigualdades. Fiquei pensando na lista de judas que deveríamos malhar neste Sábado de Aleluia.
E por falar em anjos, deixo abaixo um trecho do filme Anjos do Sol, de Rudi Lagemann, que aborda a prostituição e a exploração sexual de crianças e adolescentes, uma realidade vergonhosa que ainda rouba os sonhos e os futuros dos nossos meninos e meninas. E ainda tem gente que está preocupada em escrever sobre a jaqueta do presidente da República.
Filme Anjos do Sol

2 comentários:

Unknown disse...

A relação que você fez entre a pureza das crianças vestidas de anjo, comuns nessa época de Páscoa, inclusive eu também fui anjinho, enfim..essa relação com as mazelas enfrentadas pelos pequeninos é o diferencial do jornalismo em sua essência. O MSV tem um papel a cumprir. O vídeo com cenas do filme Anjos do Sol é muito intenso, duro. Como pode toda aquela gente assistir a bárbarie e se calar? Meu Deus que povo nós somos? Covardes? Quando eu era pequena eu também passei por isso e me calei..por medo. Hoje não me calo mais. VAMOS GRITAR SEMPREEEEEE

Talvez por isso senti uma imensa satisfação ao ver a imagem do delegado de Sidrolândia com o olho roxo. Inconsciente era o que eu desejaria ter feito no passado... como um policial, que numa cidade de pequeno porte é a voz da população diante das injustiças permitiu que uma menina de 12 anos ficasse presa?

Rebeldia? Delinquência? Não sei exatamente o que se passa na alma dessa menina já mulher...mas ela é corajosa e em meio aos olhos dos anjos celestiais, espero que tenha um futuro diferente das crianças do Anjos do Sol!

Maria-Sem-Vergonha do Cerrado disse...

É, Jack, quando trabalhei com os meninos e meninas de rua tive no meu colo crianças que, às vezes, carregavam uma pistola na mão e, em outras, tinham um carrinho de brinquedo e até o dedo na boca. Durante um período, tentamos organizar as meninas prostituídas que tinham como ponto de encontro e de programa a rodoviária. Algumas eram portadoras do HIV e o maior desafio era despertar a consciência para o uso de preservativos e para a auto-organização, visando a mobilização por direitos. Elas eram frequentamente espancadas e carregavam no corpo e na alma as marcas da crueldade...eram os anjos do sol da nossa terra Guaicuru. Com a organização em núcleos, conseguimos inserir na agenda do Estado a implementação das garantias previstas no Estatuto da Criança e do Adolecente.Alguns desses meninos já se foram, outros conseguiram passar pelo funil e tentam sobreviver criando os seus filhos. De lá para cá, vejo que há um salto nas políticas públicas brasileiras, mesmo com tantos problemas a serem enfrentados. Sei que as políticas compensatórias, como o programa Bolsa-Escola não resolve a questão, mas dá um salto, uma vez que condiciona a garantia do direito à frequência escolar. Também sei que a Educação não pode carregar a missão de resolver os problemas sociais, mas ela é luz nesse túnel das desigualdades.