sábado, 3 de maio de 2008

O charme do outono, a lenda da mandioca e o calor humano

Foto: Sebastião Salgado

Acho o outono a estação mais charmosa do ano. No frio os abraços são mais apertados e o calor humano flui com mais naturalidade. Vem o desejo de estar junto. Nessa hora, a inovação, a ousadia e a potencialidade do mundo virtual ficam absurdamente inferiores às sensações do tato, do cheiro, do paladar do mundo real. Desde quarta-feira, estou curtindo isso. A chegada do frio foi comemorada com o aniversário de um amigo especial, o Talaveira, ou melhor, o Tala. Um ser obstinado pela certeza de que o movimento da história, a partir da intervenção dos sujeitos na superação das contradições, permitirá à humanidade conhecer um outro modelo de sociedade. Um ser que não se rende. A comemoração da sua existência foi regada a caldos com aquilo de melhor que a nossa terra oferece: mandioca. Para quem não sabe, essa raiz tem uma lenda originária dos povos indígenas, é claro. Ela diz que, muito tempo atrás, a filha de um cacique foi expulsa de sua tribo e foi viver em uma velha cabana distante por ter engravidado misteriosamente. Parentes levavam-lhe comida para seu sustento, e, assim, a índia viveu até dar à luz a uma linda menina, muito branca, que chamou de Mani. A notícia do nascimento se espalhou por toda a aldeia e fez o grande cacique esquecer as dores e rancores e cruzar os rios para ver sua filha. O novo avô se rendeu aos encantos da linda criança, que se tornou muito amada por todos. No entanto, ao completar três anos, Mani morreu de forma também misteriosa, sem nunca ter adoecido. A mãe ficou desolada e enterrou a filha perto da cabana onde vivia e sobre ela derramou seu pranto por horas. Mesmo com os olhos cansados e cheios de lágrimas, ela viu brotar de lá uma planta que cresceu rápida e fresca. Para surpresa da tribo, o corpo da pequena índia não foi encontrado, encontraram somente as grossas raízes da planta desconhecida. A raiz era marrom, por fora, e branquinha por dentro. Após cozinharem e provarem a raiz, entenderam que se tratava de um presente do Deus Tupã. A raiz de Mani veio para saciar a fome da tribo. Os índios deram o nome da raiz de Mani e, como nasceu dentro de uma oca, ficou Manioca, que hoje conhecemos como mandioca.
E ver brotar da terra o alimento para saciar a forme do seu povo, da comunidade, tem tudo a ver com a utopia do Tala, remanescente do povo paraguaio, latino-americano, que vibra ao ver por toda parte da nossa latino américa nuances vermelhas ou, pelo menos, com os tons do arco-íris da diversidade. Depois dos ventos fortes do neoliberalismo, nem ele, nem nós imaginávamos ver, em tão curto espaço de tempo, a história caminhar por nova direção. Tala sabe que a vida de um militante é feita de derrotas e vitórias. Sabe também que a grande vitória é uma utopia a ser perseguida sempre, mas que pelo seu tamanho não pode embaçar a nossa vista para as pequenas vitórias que estão presentes no nosso cotidiano. Mas ele também sabe muito bem que isso não é fácil. Por aqui, temos enfrentado algumas derrotas dentro dos espaços de militância partidária. O pragmatismo é veneno contra sonhos. Nessas horas o melhor mesmo é o caldo de mandioca quente, uma boa prosa e o amor dos amigos. O frio é cortante. Então, mesmo sendo o outono a estação mais charmosa do ano, sinto o desejo de ver o frio indo embora porque a consciência sabe que pelos becos, barracos e ruas faltam cobertores e agasalhos. Como venho de uma infância pobre, muito pobre, sei muito bem que não é nada charmoso ver a mão gelar e o corpo tremer - a não ser por paixão e amor.


Solo le pido a Dios - Mercedes Sosa


5 comentários:

Mauro Sergio Forasteiro disse...

e nesse frio, nada como um bom caldo de manioca... pra esquentar o peito e aquecer o corpo do frio... bjão

Maria-Sem-Vergonha do Cerrado disse...

é vero, Mauro...é vero

Unknown disse...

Nanci, você vai tecendo seu texto...fazendo relações maravilhosas...como ficou lindo sua homenagem ao meu filósofo...de fato ele é incansável. É uma grata experiência poder compartilhar esse período de nossas vidas.E é uma vida coletiva...o João não vive para si. Nunca o vi fazendo planos individuais. E você não imagina..o profundo prazer que ele sente em comer mandioca...rsrs. O coração do João é latino americano e sua mente é universal.

Unknown disse...

Muito bonito o que você escreveu. Eu também tô preparando um sobre a mandicoa, mas vai demorar um pouco para sair. Por aqui a primvera começou a esquentar. Adoro o calor. Boa semana amiga!

Scliar disse...

Ah, esta lenda da mandioca é muito linda. Alias, lembrei do projeto que a gente tinha, de gravar as lendas indigenas, chegamos a filmar duas... Depois... bem, burocracias brasilienses! uma pena. Fazer o que, não é? Ah, e la no outro post, quando voce falou do livro do Moacyr, pois não é que não conhecia este da lagartixa? Vergonha! Pois ele é meu tio, pode? kkk Boa semana! Ethel Scliar