terça-feira, 17 de junho de 2008

Que é ter vergonha na cara?


*Leonardo Boff - texto encaminhado para publicação por Miti


Benjamin Franklin (1706-1790) foi editor, refinado intelectual, escritor, pensador, naturalista, inventor, educador e político. Propunha como projeto de vida um pragmatismo esclarecido, assentado sobre o trabalho, a ordem e a vida simples e parcimoniosa. Foi um dos pais fundadores da pátria norte-americana e participante decisivo na elaboração Constituição de 1776. Naquele mesmo ano, foi enviado à França como embaixador. Frequentava os salões e era celebrado como sábio a ponto de o próprio Voltaire, velhinho de 84 anos, ir ao seu encontro na Academia Real. Certa tarde, encontrava-se no Café Procope em Saint-Germain-des-Près, quando irrompeu salão adentro um jovem advogado e revolucionário Georges Danton dizendo em voz alta para todos ouvirem: "O mundo não é senão injustiça e miséria. Onde estão as sanções?" E dirigindo-se a Franklin perguntou provocativamente:"Senhor Franklin, por detrás da Declaração de Independência norte-americana, não há justiça, nem uma força militar que imponha respeito". Franklin serenamente contestou: "Engano senhor Danton. Atrás da Declaração há um inestimável e perene poder: o poder da vergonha na cara (the power of shame)". É a vergonha na cara que reprime os impulsos para a violação das leis e que freia a vontade de corrupção. Já para Aristóteles a vergonha e o rubor são indícios inequívocos da presença do sentimento ético. Quando faltam, tudo é possível. Foi a vergonha pública que obrigou Nixon renunciar à presidência. De tempos em tempos, vemos ministros e grandes executivos tendo que pedir imediata demissão por atos desavergonhados. No Japão chegam a suicidar-se por não aguentarem a vergonha pública. Ter vergonha na cara representa um limite intransponível. Violado, a sociedade despreza seu violador, pois não se pode conviver sem brio. Que é ter vergonha na cara? O dicionário Aurélio assim define: "ter sentimento da própria dignidade; ter brio." É o que mais nos falta na política, nos portadores de poder público, em deputados, senadores, executivos e em outros tantos ladrões e corruptos de colarinho branco. Com a maior cara de pau e sem- vergonhice negam crimes manifestos, mentem sem escrúpulos nos interrogatórios e nas entrevistas aos meios de comunicação. São pessoas que à força de fazer o ilícito e de se sentir impunes perderam qualquer senso da própria dignidade. Roubar do erário público, assaltar verbas destinadas até para a merenda escolar ou falsificar remédios não produz vergonha na cara. Crime é a bobeira de quem deixa sinais ou permite que seja pego com a boca na botija. Nem se importam, pois sabem que serão impunes, basta-lhes pagar bons advogados e fazer recursos sobre recursos até expirar o prazo. Parte da justiça foi montada para facilitar estes recursos e favorecer os sem vergonha com poder. No transfundo de tudo está uma cultura que sempre negou dignidade aos índios, aos negros e aos pobres. Roubo-lhes seu valor ético porque a maioria guarda vergonha na cara e tem um mínimo de brio. Como me dizia um "catador de lixo" com o qual trabalhei cerca de 20 anos: "o que mais me dói é que tenho que perder a vergonha na cara e me sujeitar a viver do lixo. Mas não sou "catador", sou trabalhador que com o meu trabalho digno consigo alimentar minha família". Se nossos políticos desavergonhados tivessem a vergonha desse trabalhador, digna e dignificante seria a política de nosso pais.
*Leonardo Boff é teólogo

5 comentários:

Barone disse...

Vergonha na cara é algo que falta a todos nós, nas devidas proporções. Ao permitirmos que a política brasileira se transforme em piada de mau gosto, estamos lançando por terra o que nos resta de pudor. Sim, somos nós que permitimos isso.

De nada adianta apontarmos o dedo acusador para este ou àquele dignatário. Somos nós os culpados. Nossa passividade, nossa tolerância, nossa preguiça e, pior, nossa imensa vontade de sermos guiados por mestres, timoneiros e líderes nos levou a esta situação surreal em que estamos mergulhados.

Nos esquecemos - e continuamos alimentando esta amnésia - de que mudanças são pessoais, se constroem na ética e na honestidade, coisas que deixamos de lado diariamente por estarmos "no olho do furacão", imersos na grande massa de bolo da sociedade que não para de mexer, de chacoalhar, obrigando-nos a abandonar ética e pudor para nos agarrarmos às migalhas.

Esquecemos que qualquer mudança parte aqui debaixo, da sola do pé, e não das cúpulas abençoadas do poder. É preciso repensar nosso papel político. E para isso, antes de tudo, é preciso vergonha na cara.

Unknown disse...

é barone, somos criaturas, os homens mutantes que o sistema, a cultura enjaulou em nossa própria omissão. tenho vergonha e sinto que precisamos unir pessoas, mesmo as mais diferentes, mas que tenham compromisso para começar a transformar essa nossa absurda realidade. (continuo mais tarde)

Unknown disse...

Estamos em sintônia, ontem li um artigo muito bom do Leonardo Boff e logo refletir sobre a blogosfera, aquilo que conversamos no msn, tá lembrada? Mas vou postando e comentando por aí afora, antes de cansar de uma vez. Bjks e tudo de bom!

RENATA CORDEIRO disse...

Hj não estou podendo fazer muitos comentários porque descobriram o meu mal,algo inesperado, meio sério e vou ser operada. Mas deixei um presente para vcs, uma resenha.
Apareçam por lá:
wwwrenatacordeiro.blogspot.com/
não há ponto depois de www
Um abraço,
Renata
PS: Estou mandando a mesma mensagem a todos por motivos óbvios.

Canto da Boca disse...

"O que mais me dói, vc escolheu errado o seu super-herói", o escracho das Frenéticas.
Poderíamos ter um debate riquíssimo a partir do texto do Boff e das inferências dos seus leitores e leitoras, mas aqui dentro do meu coraçãozinho vermelho, mais do que um cansaço de bater e apanhar (resgatando a Cassia Eller), um quê de brasilidade acumulada que acha que nós, o povo, ainda vamos virar esse jogo.
Um beijo.
;)