segunda-feira, 9 de junho de 2008

A flor e a náusea


Carlos Drummond de Andrade

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cizenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que triste são as coisas, consideradas em ênfase.

Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam pra casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Esquadro - Adriana Calcanhoto


2 comentários:

Barone disse...

Maravilhoso o poema do Drummond.

Anônimo disse...

Adoro Drummond...no dias em que ele faleceu a minha professora de Linguá Portuguesa, alma iluminada, parou de ensinar "orações subordinadas", abriu um livro de poesias e fez a classe ler um a um...assim conheci o poeta.
Essa poesia pra mim tem sabor especial..já use nas místicas...é aquela flor (feia) mas vencendo a brutalidade das pedras.
Veja assim a poesia de Drummnd, direta, sem metáforas, sem sutilezas...e franca, avassaladora, franca quase constrangedora...não cria jogos, não dá voltas.Fala do amargo e do doce de se seu tempo, sentiu as dores do mundo..enterrou sonhos, plantou sonhos, plantou amigos e amores para sempre...chorou na sua poesia, me faz chorar nos domingos a tarde..de nó-na-garganta.
Se silhueta angulosa ...e o olhar languido.