sábado, 13 de setembro de 2008

O ato de envelhecer

*Kelly Garcia
Há duas semanas tive a oportunidade de assistir ao show do Ney Matogrosso, Inclassificáveis, uma dessas raras vezes da gente ver de pertinho aquele artista que é de fato considerado um ídolo.
Para entender como o Ney Matogrosso ocupou em minha vida essa condição preciso dizer que na infância a música que me deixava maluca de vontade de dançar era o “Vira”...quando escutava aquele comecinho inconfundível ...e aquela voz chamando “o gato preto cruzou a estrada”...que alegria!
Era uma criança e amava o ritmo daquela música e adorava ver aquele cantor todo fantasiado cantado e dançando. Ele era “o máximo” que junto com a “lua iluminava a dança a roda e a festa”.
Sobre o Ney escutava insinuações preconceituosas dos adultos que não entendia..criança naquela época era ingênua, não era “esperta”, talvez porque não fosse necessário escutar “cacos-músicas” maliciosas acompanhadas de bailarinas arrebitando os traseiros para fazer gestos lascivos e vulgares.
Como a gente mata o tempo e ele nos devora... lá estava eu bem distante da menina de trinta anos atrás que dançava em frente a TV branco e preto, esperando
para ver ao vivo e mais colorido que nunca o ídolo da infância.
Abriram as cortinas e lá estava ele... um homem miúdo, um gigante no palco, com voz, corpo e alma, soprando vida a união mais perfeita da história da humanidade, melodia e letra, como uma serpente sensual, absolutamente hipnótico, que ali, especialmente, expressava a sua vivência, e qual era o exato tamanho da energia dos seus assumidos 67 anos de idade, fazendo um “ode à vida” sem deixar de admitir o processo do envelhecimento.
Estar ali naquele momento foi captar num exuberante espetáculo que o artista estava exibindo sua própria vida e o agir do tempo sobre a sua condição humana, e que embora o processo seja por vezes doloroso, esse é o único fio condutor, e viver continua sendo sempre a melhor escolha.
Por que será que hoje é tão sofrível aceitar o envelhecer, até a palavra velho já foi substituída por termos “politicamente corretos” como se ficar velho fosse um delito!
Penso que esse comportamento é também fruto da organização material da sociedade que tem como pilar a produção e o consumo de mercadorias, cuja sobrevivência depende de fazer com que mais e mais pessoas desejem consumir a mercadoria nova mesmo que antiga ainda esteja em perfeitas condições de uso.
Nos moldes de nossa sociedade onde tudo começa e termina na simples palavra “mercadoria” o que é velho somente serve para ser descartado.
O mesmo comportamento de mercado, infelizmente, está presente nas relações sociais, que acabou tornando a inevitável ação natural do envelhecimento um cruel isolamento social, provocando nas pessoas o medo de ser descartado tal qual um sapato “fora de moda”, tornando esse período da vida cheio de sofrimento.
Assim, por todos os lados a publicidade os meios de comunicação exaltam a beleza da juventude, deixando no imaginário a impressão que somente os jovens comem, usam sabonetes, precisam de tênis, gostam de carros, de viajar, o mundo do consumo sem dúvida nenhuma é dos jovens, o problema que essas idéias são assimiladas rapidamente no comportamento humano, pois a mente está onde os pés pisam, e aos poucos vai se massificando a cultura do “descarte humano por tempo de vida”. Essa forma de exclusão somada aos desgastes naturais do corpo acabam por causar a sensação que o envelhecer não é viver mas sim um mero sobreviver.
Sorte de nós os subvertidos, que a humanidade nunca se dobrou de forma uníssona a qualquer idéia, há sempre a resistência e muitos exemplos de vidas são verdadeiros contrapontos diante dessa “sandice mercadológica”, como Cora Coralina que aos 80 anos publicou seu primeiro livro, Gabriel Garcia Marques que fez 90 anos e escreveu Memórias de Minhas Putas Tristes (um otimismo apaixonante), José Saramago que acabou de lançar mais um livro com mais de 80 anos, Oscar Niemayer que continua criando suas obras no seu corpo de 100 anos e também a Profª Maria Luisa Papa, uma campo-grandense que há 50 anos está a frente de uma sala de alfabetização por amor ao magistério, Bibi Ferreira e tantos outros.

De olho naquele ser único no palco a mente buscou aquela criança que no passado dançava o “Vira” na frente da TV, por vezes senti alagar a íris, não por tietagem, ou coisa de fã, mas pelo sentimento que aquele artista foi capaz de provocar, talvez porque como tantas outras pessoas, percebo cada vez mais o tempo correndo envolta do meu corpo e puxando os meus cabelos. E como tantos outros seres, vivencio a angustiante busca do essencial lutando e sofrendo cotidianamente com a contradição de viver em um tempo de necessidades vãs e de muitas insanidades cometidas para que elas sejam satisfeitas.
Hoje além do “Vira” que sempre foi motivo de saudades alegres levarei na lembrança o homem de 67 anos capaz a dizer “o que eu quero assim é ser velho” dá melhor maneira que já pude presenciar .

Não vou lamentar
a mudança que o tempo traz, não
o que já ficou para trás
e o tempo a passar sem parar jamais

já fui novo, sim
de novo, não
ser novo pra mim é algo velho
quero crescer
quero viver o que é novo, sim
o que eu quero assim
é ser velho.

envelhecer
certamente com a mente sã
me renovando
dia a dia, a cada manhã
tendo prazer
me mantendo com o corpo são
eis o meu lema

meu emblema, eis o meu refrão
mas não vou dar fim
jamais ao menino em mim
e nem dar de não mais me maravilhar
diante do mar e do céu da vida
e ser todo ser, e reviver
a cada clamor de amor e sexo
perto de ser um Deus
e certo de ser mortal
de ser animal e ser homem

( Lema – Carlos Rennó e Lakua Kanza)
Dedico esse texto ao filósofo João Roberto Talavera por tudo que sempre foi e será.
* Kelly Garcia é advogada, militante de esquerda e estilista da Maria do Povo

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